quinta-feira, 28 de março de 2024

quadra 116



Se queres saber de onde venho
numa resposta concisa,
para resposta só tenho:
«Já fui novo e usei camisa.»

sábado, 16 de março de 2024

quadra 115


Esta estrela que me guia
não me oferece nenhum deus,
só me diz que perco o dia
quando os passos não são meus.

quarta-feira, 13 de março de 2024

primeiro café da tarde XLVIII


agora que estás tão vivo e eu mais do que morto,
como era, aliás, apanágio
de grande parte dos dias em que acompanhei
a tua eternidade,
vejo que ris e sorris das minhas desatenções,
do tamanho desprezo com que vivi o calendário,
do passo veloz nas rotinas que desatei.

não se te ocupe tanto o pensamento,
amigo,
fui breve mas sempre do que quis,
sê tu longo, se não sempre,
sê tudo tu se tudo queres.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

quadra 114


Nada me diz o destino,
a origem nada me diz,
não há mais do que caminho
para quem caminho quis.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

quadra 113


Se lá fora venta e chove
cá dentro sou do que estou,
no quentinho do meu robe,
na lida do meu tricô.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

quadra 112


Já só me importam, confesso,
o bom sentido, o bom passo:
se chegar – será sucesso,
se não – não será fracasso.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

quadra 111


No lugar onde me fiz
sou cadáver do que sou
quando o teu olhar me diz
que já não sou onde estou.

sábado, 9 de setembro de 2023

quadra 110


Quando vivia de quandos
quanto não vivia, quanto,
feito de espera e desmandos,
de hojes nada que ontens tanto.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

primeiro café da tarde XLVII


é verdade     pá     estou sempre de copo na mão
e então?
é isso que te importuna ou sou eu?
todos os dias procuro
deseternizar-me     libertar a alma desta contínua
imortalidade          tento matar-me     pá
e não há exercício mais próximo desse do que este de estar
todo o dia de copo na mão

como eu em agosto


Há gente cuja palavra
já morre de ser palavra,
gente que à lua se acaba,
gente que ao sol se desgasta,

gente sempre a mais na mesa
e de adeus assaz pequeno,
gente que extingue a alma acesa
na alma do menor veneno,

há gente assim, desgentada
e transparente, sem rosto,
gente que não vale nada,
gente como eu em agosto.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

primeiro café da tarde XLVI


Das vezes em que morri
a que mais me custou foi aquela
em que descobri que em ti morri
Que lancinante a minha presença
no momento em que me apunhalaste
que lancinante o punhal ter feito
parte da minha reconstrução
Pouco importa o que fui se pouco sou
se tu nem fazes ideia
de que nunca cheguei a matar-te

sábado, 24 de junho de 2023

quadra 109


Em jovem, fui um perigo
para aquele que era eu,
mas esse então inimigo
fez-se agora amigo meu.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

OFERTA (Leonard Cohen)


Dizes que o silêncio
tem mais de paz que de poemas
mas se para oferecer-te
eu trouxesse o silêncio
(tão bem que o conheço)
devolver-mo-ias dizendo
    Aqui não há silêncio
    aqui apenas há outro poema

 
GIFT (Leonard Cohen)

You tell me that silence
is nearer to peace than poems
but if for my gift
I brought you silence
(for I know silence)
you would say
This is not silence
this is another poem
and you would hand it back to me

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

quadra 108


A solidão não se deita
com o homem que sempre te ama:
tem meio metro de estreita
a teia da vossa cama.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

poesia vertical 1-14 (traição a roberto juarroz)


Há um lugar próprio para as mãos,
ao mesmo tempo maior e menor do que elas,
um lugar onde as mãos são tudo o que são
mas também algo mais.
É esse lugar onde não há
como eu esperava
outras mãos à espera das minhas.

- - - 

POESÍA VERTICAL 14 (ROBERTO JUARROZ)

He encontrado el lugar justo
donde se ponen las manos,
a la vez mayor y menor que ellas mismas.

He encontrado el lugar
donde las manos son todo lo que son
y también algo más.

Pero allí no he encontrado
algo que estaba seguro de encontrar:
otras manos esperando las mías.

domingo, 4 de setembro de 2022

eu não sou eu (traição a Juan Ramón Jiménez)



Eu não sou eu.
Sou quem
ao meu lado não vejo
mas que hei de ver de quando em quando
como de quando em quando esqueço,
quem, sereno, se cala quando falo,
quem, amável, perdoa quando odeio,
quem se passeia por onde não estou,
quem há de resistir no dia em que eu morrer...

- - -

EU NÃO SOU EU (JUAN RAMÓN JIMÉNEZ)

Yo no soy yo.

Soy este
que va a mi lado sin yo verlo,
que, a veces, voy a ver,
y que, a veces olvido.
El que calla, sereno, cuando hablo,

el que perdona, dulce, cuando odio,
el que pasea por donde no estoy,
el que quedará en pie cuando yo muera...


sábado, 3 de setembro de 2022

mulher-gato (traição a Enrique Jardiel Poncela)


    


    Tinha os olhos verdes dos gatos, tão dos gatos que até fosforesciam na escuridão.
    Como era fácil o meu amor por ela!
    À noite, e graças às felinas propriedades daqueles olhos, eu nunca acendia a luz para ver as horas no relógio. Nem para ler um livro quando estava com insónia. Bastava-me pedir: «Flérida, querida, podes focar os olhos no livro para eu ler um pouquinho?»
    Enfim, era a mulher ideal se esquecermos o espírito demasiado gatesco, pois adorava deitar-se dentro do braseiro, deliciava-se com peixe, feria-me com os seus arranhões.
    Para mim, nada disto era imperdoável.
    Imperdoável era ela sair da cama nas madrugadas de janeiro e subir ao telhado para os seus passeios ao luar.

- - -

    MUJER-GATO (ENRIQUE JARDIEL PONCELA)

    Aquella mujer tenía unos ojos verdes, como los de los gatos, y eran tan iguales a los de los gatos, que hasta fosforescían en la oscuridad.
    ¡Qué cómodo resultaba amarla!
    Porque gracias a las felinas propiedades de sus ojos, en la noche uno veía la hora del reloj, sin tener que encender la luz. Y para leer un libro en los momentos de insomnio, tampoco hacía falta encender la luz. Bastaba con decirle a ella:
    — Flérida, hija, haz el favor de enfocarme los ojos al libro, que voy a leer un ratito.
    En fin, era una mujer ideal. Lo malo estaba en que, a causa de su espíritu gatuno, le encantaba echarse en la tarima del brasero, y adoraba el pescado, y daba unos arañazos terribles. 
    Y aun esto podía perdonársele.
    Lo que ya no se le podía perdonar era el que en las noches de enero se levantase de madrugada y se subiese al tejado a dar paseítos bajo la luna.



quarta-feira, 24 de agosto de 2022

quadra 107

 
Nada me diz o destino,
a origem nada me diz,
é-me bastante o caminho
para poder ser feliz.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

quadra 106


Erros e erros no que faço,
no que calo, no que digo
- mas o meu maior fracasso
é ter sonhado contigo.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

quadra 105 (quatre-vingts ans)


(Para T. J. M. A.
no dia do seu 80.º aniversário)


São oitenta e de certeza
serão oitenta os seguintes,
mas à grande e à francesa
chamar-lhes-ei quatro-vintes.




sábado, 13 de agosto de 2022

primeiro café da tarde XLV


é muito provável que tenha chegado ontem
em tempos pericovídeos
o meu último cartão de cidadão
    ão ão ão
    ão ão ão

informa que tenho para gastar
quase nove anos até maio de dois mil e trinta e um
mais vida menos vida   
    ida ida ida
    ida ida ida

mas que admira
eu que faço quase tudo o que quero
não aproveitar tamanha prorrogação
    ão ão ão
    ão ão ão

pode ser até que em dois mil e vinte e sete
a carta de condução já tenha ido para o beleléu
e com ela éu
    éu éu éu
    éu éu éu

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

quadra 104


Mantém sempre no sentido:
pode acontecer agora
muito do que é garantido
acontecer vida fora.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

quadra 103


Um outro mundo te valha
se costumas, neste mundo,
ver como inútil migalha
a passagem de um segundo.


quarta-feira, 10 de agosto de 2022

quadra 102


Não é tudo o meu caminho
nem tudo de que preciso
quando me afasto um pouquinho
e a lágrima se faz riso.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

quadra 101


Não há dia em que não lembre
aquela outra narrativa
em que o lumaréu de sempre
na minha chama se aviva.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

quadra 100


Com a morte sempre presente
o homem que nunca desiste
evita que o dia invente
o dia que não existe.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

quadra 99


Se buscares vigilante
aquilo que mais te importe,
sempre haverá quem se espante
de ser tanta a tua sorte.

domingo, 31 de julho de 2022

quadra 98


A minha verdade acaba
na garganta, isso que admira?
Se sou homem de palavra
tudo o que digo é mentira.

sábado, 30 de julho de 2022

quadra 97


Hoje que o outono se agrava
e me sei menos de cór
não estou tão bem como estava
mas sou bastante melhor.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

quadra 96


Não te corre mal o dia
porque nem sequer te corre:
"és", na tua hipocrisia,
mais morto do que quem morre.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

quadra 95


Sem tardança mas sem pressa
fosse eu outro ao sol que espreita,
com a arte de quem começa
isento de quem se deita.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

quadra 94


Homem, tu? Isso é difícil:
não és de palavra honesta,
comprovas em cada míssil
que nenhuma alma te resta.

quadra 93


Homem, tu??? Isso é difícil:
não és de palavra honesta,
comprovas em cada míssil
que o teu coração não presta.

terça-feira, 26 de julho de 2022

quadra 92



Saberes que a vida é curta
é o que mais te consterna
mas insistes na conduta
de vivê-la como eterna.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

quadra 91

Deixa-te de listas breves
sobre as faltas que há em mim,
completa-as, faz o que deves,
descreve-me até ao fim.

quadra 90


Deixa-te de listas breves
sobre as faltas que há em mim,
completa-as, faz o que deves,
tritura-me até ao fim.

domingo, 24 de julho de 2022

quadra 89


Uma só moeda que sobre
no meu bolso ao fim do mês
é mais que as duas do pobre
que sofre por não ter três.

sábado, 23 de julho de 2022

quadra 88


Esquece o que ontem prometia,
busca o simples e o sorriso,
não sofras antes do dia
em que sofrer é preciso.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

quadra 87


Com tais actos pões a nu
que não vales cinco paus:
pior, pior do que tu
só tu nos teus dias maus.

sábado, 16 de julho de 2022

inverno



O que de nós fez tanto nós
foi um acaso, a descoberta
de que não há bicho tão só
como o que aceita a morte certa.

Não é de estranhar, assim sendo,
que ainda se faça de espera
a rota cama sem remendo
onde fizemos primavera.

Mas já não tenho horas no pulso
nem telemóvel no costume
e até sorrio no decurso
deste sumiço que nos une.


domingo, 10 de julho de 2022

soneto do meu amor serôdio


Será que estou demasiado velho
para o homem homem que hoje me acredito,
ainda carne e osso, a ver se tenho
no teu regaço zelos de menino?

Será que, acreditando, não me aleijo,
fartando o sono de sonhar contigo,
com tamanhas saudades do teu beijo
como se isso não fosse tão perigo?

Será que ainda podes ser amiga
se o desfecho me espera e a barba é branca
e eu sou da noite quase todo o dia?

Será que estou cansado e isso te cansa?
Serás jovem de mais por culpa minha?
Serei pouco homem se a mulher é tanta?

quarta-feira, 29 de junho de 2022

quadra 86


Amiúde sem frufru
volitas neste meu caos,
não há pior do que tu
quando estou nos dias maus.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

putineio

putineio s.  arte menor de enredar os outros, justificando comportamentos agressivos com argumentos autocomiserativos, à maneira de Hitler e Putin, não esquecendo muitos outros governantes (árabes, israelitas, chineses, etc., etc., etc.)

primeiro café da tarde XLIV


eu putinelho
abutre do futuro e de outros passados
carcereiro de vertigens e invasor evasivo
violador de esperas e de esperas dissimulado

eu putinelho
latejando à superfície
da sonolência do mundo
registando as fraquezas da função humanoide

eu putinelho
crepitando de enfados enfadado de imprevistos
cobrindo de óxido e carcaças
os actos exaltados dos que me rejeitam

eu putinelho
ceptro-trono-coronado hiperoculado
no cume da minha colina informo que

não passais de vermes
no largo lento cego túnel de um suposto sonho
apenas sois um eco longínquo
abafado distorcido incompreensível
frémito quase imperceptível
da mera suspeita das raízes

eu putinelho
ceptro-trono-coronado hiperoculado
no cume da minha colina aviso que

nunca me cansarei do deus que sou

terça-feira, 14 de junho de 2022

primeiro café da tarde XLIII


Sempre dei ao desencontro
o nome de semente,
sempre vi nele a força possível
e a flor final.

Digamos, sem presunção,
que sempre compreendi.

Por isso digo que não,
nunca serei suficiente
para perdão que me peçam.

domingo, 12 de junho de 2022

putinelho

putinelho deprec. s. indivíduo com atitudes e comportamentos próprios ou semelhantes aos de Putin, caracterizados pela mentira descarada e pela agressividade própria que supostamente previne a de outros; indivíduo que simula autocomiseração para obter os seus intentos.

putinesco, aputinado

Putinesco, aputinado - adj. relativo ou semelhante aos comportamentos e atitudes de Putin, caracterizados pela óbvia mentira desavergonhada e pela agressividade imperialista sob um manto de falsa autocomiseração.

sábado, 28 de maio de 2022

primeiro café da tarde XLII


ouve, maria, tu não
me ponhas o coração
a cozer em lume brando,
não, não, maria, nem quando
no final desta modorra
tiveres tempo e pachorra
para fogões e outras ciências,
não, não, maria, não, não
que eu sei das tuas ausências:
não vou permitir, ah não!,
que me esturriques o coração.

sábado, 7 de maio de 2022

sábia

Que velozes os dias
há dias começados:
ainda ontem media
ditas sem desenganos,
isenta de passados,
já hoje sei de tudo
acerca do futuro.

terça-feira, 8 de março de 2022

covídeo

covídeo adj.  de ou relativo à epidemia de covid-19 ou ao período de tempo em que ela ocorreu.* 

*Utilizado, creio, com significado em parte sobreponível, já li o termo 'covídico'. Gosto menos da sua sonoridade, embora talvez seja mais intuitavemente cunhável.

segunda-feira, 7 de março de 2022

covidice

covidice s.f. (pejorativo) atitude/comportamento que se explica pelo receio extremo ou descabido de se ser contaminado pelo coronavírus.

sábado, 1 de janeiro de 2022

1/100. MORIBUNDO LENTO


Rebecca e eu vivíamos no Velho Moinho, a oitenta quilómetros da capital e longe de todas as tentações. Chegáramos havia pouco mais de seis meses, num vinte e nove de julho quente e abafado que não pressagiava os ventos e as chuvas do outono, muito menos o frio que se lhes juntaria durante um longo e autoritário inverno.

«Vai correr tudo bem, não vai, Valentyn?», perguntara-me ela enquanto puxava o travão de mão do seu velho calhambeque. Consultei a hora no telemóvel. A contagem do tempo começava trinta e nove minutos depois das catorze horas. «Não te preocupes, Rebecca.»

Para Rebecca, as palavras – havia sempre que prová-las com actos. E agora que eu era um mero humano isso era ainda mais necessário. Mas prendeu por instantes a minha mão na sua e disse o que havia a dizer, depois de tudo por que passáramos. «Sim, Valentyn. O importante agora é vivermos de acordo como o planeado. Um dia de cada vez.»

O planeado era a minha desistência. Todos, Rebecca e eu incluídos, contávamos com a minha desistência. No último instante, antes de me perfurarem o coração com uma estaca ou uma bala de prata, os tutores tinham-me dado o benefício da dúvida. E eu aceitara as condições impostas. Era agora um moribundo lento, essa foi a melhor expressão que arranjei para me definir, embora nunca a proferisse em voz alta para não obrigar Rebecca a sabê-la. Se tudo corresse como previsto, o meu fim seria dali a vinte ou trinta anos.

Ao longo dos meses seguintes fui acreditando que desistira mesmo. Até nas horas mais difíceis, aquelas em que ressacava da antiga ânsia noctívaga. Não está na minha natureza aceitar a morte mas empenhava-me nela com todo o artifício do meu génio. Chegava a sentir-me aliviado face à minha nova condição de homem rasteiro, preparado para tudo o que pudesse correr mal no meio daquele tudo bem correr que Rebecca esperava.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

café da tarde XLI


és tão de aqui     qhadija     tão de ali
tão mais     tão longe     tão pouco de mim
que tudo o que hoje quero
    velho egoísta
é que te inventes e me sobrevivas

sei lá eu se estes versos são bonitos

a serem versos já apenas sei
que de algum modo haviam de ser escritos

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

primeiro café da tarde XL


eu cá de pretas nunca jogaria
1. e4 d5 contra ti
és tramada implacável decidida
sábia e estudiosa     não perdoas
escandinavas à portuguesa

neste esparramado xadrez
que vamos construindo    em tu deixando
vai 1. e4 e6 com muita calma
     que hoje não estou numa de perder
     e muito menos de vencer

1. e4 c5 também não estaria mal
mas viesse o que deus quisesse
fosse como fosse seja como for
de acordo com a média são menos de quarenta
as jogadas para o teu xeque
xeque
xeque-mate

não achas     meu amor
que este nosso jogo dá empate?

sábado, 11 de dezembro de 2021

quadra 85


Na minha insónia há um rasto
de culpa, adeus e embaraço
por mais este dia gasto
sem amor pelo que faço.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

primeiro café da tarde XXXIX


falta-nos o tempo em que éramos pigros
    clientes habituais
    do fácil assombro e do invento inócuo
tivemos talento à beira-perigo
    talvez mesmo o génio
    de animais vividos
    que sempre adolescem
e hoje somos isto
    que tão bem se vê
        pedaços de carne ausentes de luz
        alienadas vidas
        sem osso na alma
        fatais parasitas
        de tudo o que um dia
        porventura fomos


sábado, 6 de novembro de 2021

primeiro café da tarde XXXVIII


a queda há pouco foi breve 
mas dura
da cabeça ao chão três metros em falso
mas estou em crer que sem cabeçada

dela e num repente
    o rasgo fundo largo e feio até ao osso
        branco no dorso do anelar esquerdo
    um algo também de pele arrancada sob sei
        lá que joelho
    e outro de pele esfolada acima
        da dor de cotovelo
agora e na cama chega a presença do osso machucado
    nessa transição entre costas e pernas que em mim
        de acordo com o nível e outras opiniões mais avalizadas
    ninguém poderia chamar de rabo

pensei que era a morte ali
    caraças
mas creio que ainda me restam algumas horas
quantas não sei que nunca se sabe
de meia dúzia até infinitas
    sejam as que forem
mas estou mais preparado para o fim
    do que para a eternidade

sábado, 30 de outubro de 2021

o talento de amar-te



hoje quase me deu para telefonar-te
de madrugada e quando ia a manhã a meio
também se adormeci e se fazia tarde
quase quase à noitinha e à hora em que me leio
no cansaço do sol nos desmandos da lua

hoje quase me deu para me pôr brejeiro
e ao longe desnudar-te até que fosses nua
e de tão servo teu brincar a ser teu dono
no constante cadinho em que fiel se apura
à beira da tua alma o abismo do meu corpo

hoje quase me deu para reinventar-te
quando a meio do sono antecipasse o sonho
e o vento como agora aflito nos buscasse
nos escaninhos da espera entre as esperas de quem
da obstinação fizesse a sua única arte

hoje quase me deu para ser o que vem
hoje quase me deu para ser o que parte
hoje quase me deu para ser o que tem
entre astilhas da morte o talento de amar-te

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

transparência e luz no teu aniversário







parti de lisboa     madrugada ainda
    para aqui chegar antes da confusão
    por isso alunei algumas horas antes
    da hora em que é comum abrirem os mercados
queria à-vontade para investigar
    todas as ofertas através das montras
    espreitar o líquido mais importante
    avaliar     talvez     os preços mais em conta
mas devo dizer-te que esta minha ideia
    logo desde o início me pareceu má
    pois nada encontrei dessa lua saudosa
    onde fomos jovens e nos conhecemos
tudo está mudado     nada lembra os dias
    em que os dias eram de hoje e entusiasmo
    sem a demasia de amanhãs e esperas
percorri cidades     aldeias e vilas
    e     dentro de todas     ruas avenidas
    sempre em busca de água     essa água cristalina
    em cujo sabor matávamos a sede
mas também aqui se vão impondo a sede
    e os gestos com que ela não se intensifique
    também aqui a água é paga a peso de ouro
    apesar de muita e menos poluída
de nada serviram os tempos antigos
    de bom selenita     mineiro capaz
    já ninguém se lembra de quanto entreguei
    para a construção deste mundo habitável
a única mensagem que me transmitiram
    é a de que está proibida a terráqueos
    a venda de bens     abundantes ou não
    que tenham origem no solo lunar
pouco lhes importa que o meu bisavô
    tenha aqui nascido     inteiro para a lua
    e que o seu avô tivesse combatido
    para aqui morrer durante meio século
    e que há poucos anos eu tivesse sido
    um dos que inventaram este paraíso
para resumir-te todo o meu sucesso
    dir-te-ei     sem sorriso     que apesar de tudo
    alguém mais ousado enfim me prometeu
    o mais bem medido litro e meio de água
    numa das melhores garrafas de plástico
    a um preço acessível entre os excessivos
está pronta amanhã     tem calma que haverá
    transparência e luz no teu aniversário
    vais poder matar um pouquinho da sede
    saltando uma ou duas dessas dez pastilhas
    com que diariamente tentamos esquecê-la
mas olha     maria     não é só na terra
    que a água potável se tornou tesouro
muito em breve     a lua será outro mais
    desses cemitérios de antigas demandas
    que vão construindo as invenções do homem
não temos futuro     talvez esta seja
    a última das minhas viagens à lua

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

amiga

Klara é Amiga Artificial: 'vive' para sê-lo, sonha sê-lo na loja onde espera pelo objecto do seu amor: ora na montra, mais directamente sob a luz do seu Sol e a curiosidade dos que passam; ora mais escondida, para que outros Amigos Artificiais, talvez mais brilhantes, talvez menos humanos, tenham a sua vez.

Em breve, nada mais lhe interessará do que compreender e ajudar Josie, que foi quem a quis para si e convenceu a mãe a comprar-lha. A sua competência é tal que chega a pedir a intervenção do Sol, essa poderosa e ocupadíssima entidade que todos os dias a revigora. Pede-lhe, com humildade e fervor, que dê um futuro à sua amiga, que a cure. Sim, porque Josie, ao ter sido 'elevada' ['lifted' no original], tornou-se uma criança muito frágil. Não te preocupes, leitor, aos poucos irás descobrindo o que é isto de ela ter sido 'elevada'.

Ishiguro, suave e genial construtor de mundos, hábil construtor de possíveis futuros e inesperados passados, obriga o leitor a viver, sorrir e folhear, sem reviravoltas, fogos de artifício, soluções ou recursos espalhafatosos. Ishiguro, como sempre, não intervém com as suas opiniões na história e nos ambientes que cria. Estes são, por inteiro, de quem os narra e de quem os vive. E de quem os lê.


- Klara and the Sun
- Kazuo Ishiguro
- Faber & Faber (2021)
- Lido em setembro de 2021, na versão inglesa [há tradução portuguesa, pela Gradiva, 'Klara e o Sol', trad. Maria de Fátima Carmo]

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

que se foda o homem (para o meu amigo savimbi)


amigo savimbi     como sabes
não sou o centro de nada
e seria preciso ser o centro de tudo
para achar a vida um absurdo
e a dor escusada

viver há de ser sonho para o homem
para esta cadelinha a que dei o nome de luna
para o gatinho a que chamei gato porque não lhe quis chorar a morte
para a mariposa até
    e este até é tão pouco de homem
a que decidi dar o nome de traça
    por     na opinião dos outros     traçar bué

se há de chamar-se ao sonho sonho do homem
há de chamar-se pesadelo
aos minutos que o comem
e que se foda então o absurdo da vida
que se foda o sofrimento
que se foda o seu azedo

eh pá
que se foda o homem

sábado, 29 de maio de 2021

desmaio


desmaio s.m. finais de maio, tendo em mente, sobretudo, os dias de estio que se adivinham, quentes e por vezes infernais; fig. final de um período sereno e aprazível. (de maio)

EX: mais um desmaio

mais um desmaio (carta para Jane)


São quatro da manhã, finais de maio,
sábado, mas os sábados
há muito são iguais,
costumo dar o nome de desmaio
a estes dias pacatos
antes dos que aí vêm, infernais.
Tantos nomes que inventas, meu amigo,
recordo que dizias
com o teu sorriso gordo,
mas dou-me conta de que não consigo
dar nome às mãos vazias
do rumo que traçavam no teu corpo.
Quando, como esta noite, me aventuro
no triste e fértil chão
de tudo o que perdi,
interrogo-me se este meu futuro
tinhas presente então,
se já me adivinhavas tão sem ti
na madrugada de mais um desmaio.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

primeiro café da tarde XXXVII


sobressalta-me ainda a pedra que
no teu percurso te prepara a queda
és tão voo como ave de rapina
mas tantos anos há que não o sabes

sobressalta-me ainda que haja antóneos
na tua cama e eu seja nenhum deles
és o mais meu deste homem sem procuras
mas tantos anos há que não o sabes

sobressalta-me ainda que desculpes
numa dúzia de falhas um milhar
de certezas antigas, és tão da água
mas tantos anos há que não o sabes

sobressaltas-me ainda como o limo
verde que ontem da espera enferrujou
no teu mar só me deixas cabotagem
mas tantos anos há que não o sabes

sobressaltas-me ainda
mas tantos anos
ah
que não o sabes

quinta-feira, 27 de maio de 2021

desquandar

desquandar . v. tr. 1. Retirar características temporais a; 2. Retirar importância temporal a;
v. intr. e pron. 3.Separar-se de referências ou interesses temporais (passado, presente, futuro); 4. não ter interesse na vida; 5. Desinteressar-se, esquecer-se (de algo ou alguém e do vivido com esse algo ou alguém).
ETIM. quando

EX. a) Deixou de sofrer quando conseguiu desquandar todos os seus passos.
b) Desquandar-se não foi, como é óbvio, uma decisão consciente.
Ver tb.: Desquandamento, desquando (por derivação regressiva), etc.


decadência

 Decadência - s. f. tendência patológica para deprimir durante uma década após perda traumática, sobretudo amorosa ETIM. década

terça-feira, 25 de maio de 2021

soneto do meu coração desquandado

para a. c. e s. b.





O meu coração é quando
te reclinas no sofá
entre sonos apurando
o sonho que já não há.

O meu coração é quando
dormes cheiinha de má
e o ferves em lume brando
para o esturrar, esturra lá.

O meu coração é quando
ser meu tanto se te dá,
e adeus em verbo nefando
acompanha o teu olá.

O meu coração é quando
de ti se vai desquandando.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Qhadija





Quando nas ruas de Lisboa,
há pouco mais de pouco vento,
a primavera andava à toa
do que fazias com o tempo,
isto da vida era deus dentro,
janela aberta para o encontro
antes da urgência e seus escombros.
.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Soneto desgovernado


Se exausto um dia o futuro
atirasse ao lixo o enredo
e desistindo de tudo
desistisse deste azedo,
se de esperanças e apuros
se deixasse tarde ou cedo
displicente face ao furto
por ontem deste brinquedo,
se atribuísse ao céu escuro
a persistência do albedo
e compreendesse quão curto
inventa amor, quão veneno,
se exausto um dia o futuro
quisessse ser desgoverno...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

perspectiva da alma (Mario Benedetti)


Meu irmão corpo     estás cansado
do cérebro à misericórdia
do paladar ao vale do desejo

quando me dizes     alma ajuda-me
a minha comoção visita a angústia
e até o próprio ar é vulnerável

meu irmão corpo     no trabalho pões
músculo e estômago     também os nervos
rins e brônquios     também o diafragma

quando me dizes     alma ajuda-me
sei que estás condenado     que és matéria
e a matéria é propensa a desfiar-se

meu irmão corpo     sei-te bem
fui hóspede e anfitriã das tuas dores
rampa modesta do teu sexo ávido

quando me pedes     alma ajuda-me
sinto que o frio me rebaixa
que magia e doçura se me vão

meu irmão corpo     tu és tão fugaz
conjuntural efémero brevíssimo
imóvel por efeito de um arquejo

e eu que tenho por uso ser a vida
acabarei estreitando os teus ossinhos
alma incompleta sem as tuas vísceras

                                                            Para Qh,
                                                            traição a 'Desde el alma' (Mario Benedetti),
                                                            Casarão e 2021, 11 de janeiro
                                                            

o silêncio do mar (Mario Benedetti)

O silêncio do mar
brama um juízo infinito,
mais concentrado que o de um cântaro,
mais implacável que duas gotas

quer aproxime o horizonte quer nos entregue
a morte azul das medusas
as nossas suspeitas não o deixam

o mar escuta como um surdo
é insensível como um deus
e sobrevive aos sobreviventes

Nunca saberei o que dele espero
nem o conjuro que deixa nos meus artelhos
mas quando estes olhos se cansam de ladrilhos
e esperam entre a planície e as colinas
ou em ruas que se fecham sobre mais ruas
então, sim, náufrago me sinto e só o mar
pode salvar-me

                                                            Para Qh.,
                                                            traição a 'El silencio del mar' 
                                                            (Mario Benedetti), 
                                                            Casarão e 2021, 11 de janeiro

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

soneto ancestral


um vórtice de febre me devora
às vezes     um imenso mar de cinza
que esbate os tímpanos     que grita ao rasto
da minha pele entre algas de silêncio

uma náusea inquieta que me afunda
um dilúvio de plástico e alcatrão
que as fronteiras desfaz     que cega as vozes
na densidade destes peixes podres

sorri-me     então     um vago tiritar
um saber e de cór as cefaleias
da côr     essas que esgueiram em camisa
por entre as horas     os invernos todos

quando assim acontece     tudo é dentro
e quando não     é porque tudo é fora

                                     Lisboa, 17.09.2010

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

intermezzo osculatório


O averiguador consultava a ocorrência num papel. Responda-me só a uma coisa, senhor...

Pergunte, respondeu o senhor, sem se incomodar com as reticências.

Vejo que está calmo. Não se preocupa?

Com quê?

Com o que pode vir a acontecer-lhe. Sobretudo, com o que pode vir a acontecer à sua mulher.

Bastante.

Não parece. Talvez não saiba que pode ter de cá passar esta noite. Esta e outras... Que pensa disso?

É como disse. Preocupo-me.

Sim, claro. Preocupa-se. Já agora, pode explicar-me melhor com quê?

Com tudo. Com o que possa ter feito. Com o que os outros possam pensar de mim. Sobretudo, com a passagem do tempo.

O averiguador não queria acreditar. O meu amigo não pode dizer isso. É óbvio que não se preocupa. Está a esquecer-se da razão por que devia preocupar-se a sério.

Beijei a minha mulher, não é?

Ó meu amigo, beijou-a quando ela estava desprevenida e beijou-a à moda antiga. Sem um contrato prévio e sem máscara osculatória. É óbvio que não se preocupa com a opinião dos outros. É ainda mais óbvio que não se preocupa com a saúde dela. E, claro, não se preocupa nada com a lei.

Se eu lhe disser que provavelmente estava a dormir? Que estava no meio de um sonho quando o fiz?

Dormia, pois então. Acordemos em que dormia. Mas o que fez ao certo, enquanto dormia?

Aproximei-me dela, está visto. Só isso.

Só isso? Só isso seria muito. Mas parece-me que não foi só isso, pois não?

Recordo-me de que ela acordou aos gritos.

E de que se recorda mais quando ela acordou aos gritos?

Os meus lábios confundiam-se com os dela. Mas num primeiro instante...

A frase ficou presa porque nos lábios do averiguador se desenhou uma breve mas indesmentível onda de repulsa, que tentou disfarçar com um incentivo a que o outro continuasse. Num primeiro instante?

Num primeiro instante, os lábios dela pareciam dançar com os meus. Senti como antigamente a humidade da sua boca, o veludo da sua língua. No princípio estranhei. Éramos de novo aprendizes. Não beijávamos há... Não nos beijávamos desde a proibição.

À palavra proibição, sem espera nem disfarce, o averiguador olhou para o averiguado com o sorriso largo de quem obtinha por fim o que desejava. A sua mulher está em choque pelo crime cometido.

Mas ela parecia corresponder.

Ela estava a dormir. De qualquer modo...

De qualquer modo parecia corresponder.

Não é essa a informação que temos. A sua mulher não concordou com o beijo. Acordou aos gritos, apresentou queixa de imediato e a informação que tenho do centro de quarentena é de que vive em sobressalto com receio de estar contaminada. Não está arrependido?

O averiguado soltou um suspiro e, pela primeira vez, pareceu reconhecer o seu erro. É a minha mulher. Estávamos a sonhar.

Isso para mim são pormenores que só no julgamento serão tidos em conta. O que eu sei e o que apenas me interessa é que a beijou sem o seu consentimento, o que significa que ela é vítima de um crime e não cúmplice, como tem querido fazer-me crer.

Crime...

Sim. Há mais de uma década que os beijos estão proibidos e há mais de meia que foi agravada a moldura penal para quem os dá. Existem, como sabe, certos procedimentos obrigatórios para quem opta por gestos afectuosos. No mínimo são necessários um contrato escrito entre os osculantes e o uso de máscaras osculatórias por ambos.

Eu sei, mas...

Mas estava a dormir.

O averiguado baixou a cabeça e desistiu da defesa. Talvez não estivesse.

Aliviado, o averiguador deixou que um silêncio crescesse sobre as lágrimas que começavam a escorrer no rosto do outro. Vamos, não esteja assim. Toda a gente comete erros. O passo principal já foi dado ao reconhecer o crime. Agora é pagar por ele e seguir em frente. Retocou a máscara para se certificar de que estava bem colada ao nariz, levantou-se e mandou vir o carcereiro. Passa cá a noite e amanhã é apresentado ao juiz.

Já se faziam choro largo as lágrimas do criminoso. Enquanto o carcereiro o encaminhava para a cela, apenas pôde pronunciar, entre soluços, Por favor, avisem a minha mulher...


in Saúde Ambiental - Caderno de notas soltasEds.: Ricardo R. Santos, Osvaldo Santos e António Vaz Carneiro (ISAMB - Instituto de Saúde Ambiental)

sábado, 23 de janeiro de 2021

um destino prometido


Naquela que Romain Gary dizia ser a primeira das autobiografias que escreveu, La promesse de l'aube,  é-nos contada a sua vida desde a infância, na Polónia, até o final da Segunda Guerra Mundial. Judeu russo nascido em Vilnius, marca a sua escrita uma capacidade incomum para expor sem pejo nem rebuço todas as ânsias que o impeliram desde criança.

Um profundo e correspondido amor o une à mãe, ex-actriz que não se poupa a esforços para dar ao filho a oportunidade de ele cumprir um destino importante. Um destino que para ela é inevitável e de que todos os actos do jovem são uma promessa. Assim, sem pausa o incentiva a fazer o que é preciso para ser grande: um grande escritor, um grande embaixador, um grande artista, um grande homem. Sem pausa o defende de tudo e de todos. Sem pausa mostra ao mundo que o filho é diferente. Quanto a ele, por amá-la ao ponto de não querer desiludi-la nem nas suas expectativas mais megalómanas, desde cedo torna seu o sonho de satisfazer os sonhos da mãe.

Mesmo depois de morrer, essa mulher forte e capaz de tudo para amparar o filho continuará a ser a bússola no percurso deste, um percurso pautado pelo fino sentido de humor dos que são capazes de rir de si próprios, por um desconcertante à-vontade para confessar os actos mais insensatos e por uma assombrosa incapacidade para desesperar.

A Promessa
Romain Gary
Livros do Brasil, 2019
Ed. original: La promesse de l'aube (1960)
Trad.: Augusto Abelaira (cap. XXII: Manuel Reis)
Rev.: Susana Baeta

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

quadra 84


Adiar parcas e demos
mais do que nunca é preciso.
Mas como, se nós não temos
nem um pouco de juízo?

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

quadra 83


Só hoje, que isso faz parte
deste invulgar mundo adiado,
eu percebo que beijar-te
já é coisa do passado.

sábado, 16 de janeiro de 2021

soneto sem futuro


Dizem com todo o aparato
que viver é homicídio
e eu dou, tíbio, de barato
que urge agora o suicídio.

Dizem «mete-te no quarto,
adia esse suicídio»
e eu, mais que farto, refarto,
solto o meu riso covídeo.

Dizem «não faças teatro
com esse teu riso covídeo»
e eu, finalmente sensato,
desenvolvo o amoricídio.

Dizem «é só uma fase».
Que importa agora? Sou quase.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

quadra 82


Dizem «mete-te no quarto,
adia um pouco o suicídio»
e eu, mais que farto, refarto,
solto o meu riso covídeo.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Esperança e Amor


Enforquei minha Esperança,
mas Amor foi tão madraço
que lhe cortou o baraço. (CAMÕES)

Lembro-me bem de Esperança
ao colo embalando Amor
e este dizendo, em voz mansa,
«aceito seja o que for».
Cadáver já, bolorenta,
enforcada em triunfo escasso,
ainda hoje Esperança inventa
para Amor no seu regaço:
só por ela ainda Amor tenta
depois que se fez madraço.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O maior defeito de Belisa


Mil defeitos tem Belisa,
à parte o maior defeito:
o de ainda ser amiga
deste palerma perfeito.

Quem a entenda, quem a estude
há de atentar no conceito
de nunca a muita virtude
casar com o pouco defeito,
pois, de uma forma imprecisa,
mil defeitos tem Belisa.

À parte um, que é mais pecado,
todos há que perdoar-lhe,
que amar tanto ou demasiado
nunca foi mero detalhe:
brilhe, pois, o que é perfeito
à parte o maior defeito.

Não pode é passar em claro
aquele que tanto a apouca,
há que fazer-lhe o reparo,
há que dizer-lhe que é louca
por que entre vícios persiga
o de ainda ser amiga...

Amiga de quem na vida
nunca soube ser amigo,
amiga comprometida
de quem vê nisso perigo,
amiga inteira e a preceito
deste palerma perfeito.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

quadra 81



Mil defeitos tem Belisa
além do maior defeito:
o de ainda ser amiga
deste palerma perfeito.

domingo, 3 de janeiro de 2021

quadra 80

Eu isto, eu aquilo, o meu
percurso, esta minha vida,
foi assim que aconteceu
em mim outra alma perdida.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Soneto do maior erro



São vidas a vida, o tempo
baralha, parte e reparte
aquilo que cá por dentro
se assemelha a um só combate.
O problema de lembrar-te
e lembrar-me como lembro
é sempre o de esconder a arte
com que invento, se me invento.
Falta-me, pois, fantasia,
ponho em tudo igual momento,
pouco estudo e nada aprendo
se me sou tão demasia,
se juro nós e o que fomos
para essência do que somos.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

inventário


Rezingão, amuado, mau,
rancoroso, solitário,
burro, palerma, calhau,
trol sem alma nem horário.

Desistente, preguiçoso,
infeliz, desamorado,
monstro, zombie, e é forçoso
que de sonhos dispensado.

Se tenho de falar mal,
falo de mim. Só faltou
na lista atrás que afinal
escrevo melhor do que sou.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Soneto da São Silvestre de 2020



A trinta e um de dezembro apuro o ouvido
e afino a vista, já ninguém me tira
ser antónio, estou mais que decidido
a buscar em janeiro essa vampira
que me dessangre calma, generosa,
que, moribundo eu já, me parta os ossos
e me sugue o tutano enquanto goza
de uma vida escusada e sem remorsos.
Duas romãs, um par de diospiros,
pouco antes da tragédia talvez tente
duas léguas na estrada e com suspiros
na última são silvestre, é evidente.
De tudo isto a minha única mentira
há de ser em janeiro a tal vampira.


PS1: A São Silvestre, nesta década a minha primeira contra mim apenas, entretanto já se correu (Casarão-Dagorda-Peral-Casarão: 10 km, 48m56s. Não está mal, fiz o que pude sem ter quem puxasse por mim...)
PS2: Definitivamente, a partir de hoje digo diospiros e não dióspiros... Zeus não se importará.
PS3: Obrigado à bela romãzeira-diospireira, assim mesmo e não necessariamente plantada.
PS4: A vampira, ofereceram-ma certas passagens do enorme Romain Gary, em "A Promessa". Por exemplo: «Sempre sonhei ser arruinado moral, física e materialmente por uma mulher: deve ser maravilhoso, apesar de tudo, poder fazer alguma coisa de grande na vida" (p. 138, trad. Augusto Abelaira, Livros do Brasil, 2019).

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

primeiro café da tarde XXXVI

Algo me diz que vislumbras
a tristeza que me habita.
Imagino-te às vezes noite e sono,
espera e sonho lutando por mim
ou por tudo o que um dia prometi.
Mas já não sou promissor, basta seres
mais decidida para o entenderes.
Antes disso e se puderes
deixa uma garrafa cheia
no lugar da vazia.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

primeiro café da tarde XXXV


Serei velho adolescente, derradeiro
canto de cisne
 enquanto me deres
dois ou três segundos de tontura
na tua atenção.
Mas que isso te não ocupe: incrédulo
de seres todas as mulheres,
nunca serei o homem que não queres.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

quadra 79


Toda a noite o meu outono
geme e tirita de inverno
que toda a noite sem sono
ardo e crepito no inferno.

quadra 78

Como conciliar o sono
se neste frio de inverno
em dias de ainda outono
também arde o meu inferno?

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

primeiro café da tarde XXXIV


Confunde-me essa tua busca exaustiva das simetrias.
Acreditas mesmo nelas?
Pondo que existem, passa-te ao lado
o encanto dos breves e ligeiros desencontros,
o sorriso com que chegas, o chapéu com que partes?
E nós? Preferes ignorar ao espelho
a longa e completa assimetria
do nosso rasto, da nossa alma?

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

quadra 77


Chama-se homem esse bicho
de sonho, espera e alma acesa, 
incapaz do que é preciso
para amar a natureza.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

quadra 76



Desta infinita chatice,
deste tempo malfazejo,
sobrará a covidice
de me negares um beijo.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

quase como tu


Como tu, sou papagaio,
minto e cedo à carne fraca;
como tu, mal me distraio
também corto na casaca.

Como tu, com pouco ou nada
para o burgo contribuo;
como tu, não dou passada
que não seja de recuo.

Como tu, fiz-me acrobata
no céu raso deste à toa;
já vês: apenas me falta,
como tu, ser de Lisboa.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

quadra 75


Como tu, sou papagaio,
minto e cedo à carne fraca;
como tu, mal me distraio
também corto na casaca.

domingo, 15 de novembro de 2020

quadra 74


Só me tornei afeiçoado
aos pormenores da vida,
quando aceitei, já cansado,
que ela está quase perdida.

sábado, 14 de novembro de 2020

quadra 73


Como é estranha a vida em sonho,
como à parte dos meus dias,
quanta mentira lhe ponho
se ainda há pouco me sorrias.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

homem


Do que fui sou homem livre,
sem apego à história e ao verbo,
pouco me importa o que tive
se o que tive não conservo.

Faço por que seja um fio
este caminho que rasgo,
que ao homem basta o respiro
para logo fazer estrago.

Luto por erros ligeiros,
propensos quase ao olvido,
para ser homem a sério
há que não ter existido.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

quadra 72


Se aconteceu habituar-me
a esta distância entre nós,
para morrer de saudade
basta ouvir a tua voz.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

quadra 71


Como sempre despertou-me,
sem prodígio nem surpresa,
no murmúrio do teu nome
a minha única certeza.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

primeiro café da tarde XXXIII

À Irmã Maria José de Belém (Emília Matos),
a querida Tia Madre (10.ago.1943-02.11.2020)


Recordarei
com o riso fácil e largo
o amor às narrativas,
a chamada aos domingos,
a missão que se faz vida.
Recordarei,
porque mo ensinaste,
quão grande a coragem de crer em deus,
quão maior a arrogância de o negar.
Ignoro quantos verões me faltam
destes de não chegares,
mas enquanto os houver
recordarei.


segunda-feira, 9 de novembro de 2020

epifanias




Representante do que uns designam de realismo sujo e outros apenas de escrita minimalista, Raymond Carver aborda o quotidiano, numa linguagem quotidiana, com uma sobriedade quotidiana.

A proposta é a de uma ausência de literatura. Mas é uma proposta mal sucedida: os doze episódios do livro são percorridos por desempregados, alcoólicos, divorciados e desentendidos, gente fazendo pela vida sob uma pena que, além de dominar os segredos do diálogo e da narrativa, detém a mestria da sua conjugação.

Acresce que resultam epifanias e redenções de pequenas quebras de rotina, de frases simples, de gestos previsíveis. E também aqui há literatura.


Catedral
Raymond Carver
Trad.: João Tordo
2010 (original: 1983)

domingo, 8 de novembro de 2020

para ser maior




Raskólnikov leva uma vida de extrema pobreza: abandona os estudos por falta de dinheiro, encosta o sono numa almofada de roupa velha, deve já várias rendas do cubículo que habita, come quando calha. Talvez seja tudo isto o alimento para a lição que retira da História: vários grandes homens, como ele crê ser, tiveram de cometer crimes no início da vida para poder cumprir o seu destino. E fizeram-no sem hesitações nem remorsos.

Decide seguir o exemplo e assassinar uma velha agiota, um ser menor, desnecessário, prejudicial à sociedade (um piolho, nas suas palavras) e cujo dinheiro pode ser usado em seu proveito e dos outros. Já de início, no entanto, hesita. E quando finalmente se decide, comete vários erros. O maior dos quais o de assassinar também a irmã da agiota, que entretanto surge na cena do crime, a casa onde ambas vivem. A atrapalhação é tanta que, embora retire da casa algumas jóias e uma carteira, decide escondê-las até de si próprio.

A obra é uma longa viagem pela mente de Raskólnikov, os temores e as dúvidas que antecedem e, sobretudo, se sucedem ao crime. Talvez, afinal, ele não seja o grande homem que imaginou ser. Talvez por isso mereça o castigo que merecem os homens menores. E é ele próprio que vai de encontro, aos poucos, desse castigo. O seu percurso é, no fundo, o de descobrir que também é um piolho. E a redenção só acontece no momento em que percebe que um homem banal também pode ser amado.

Crime e Castigo
Dostoiévski
Trad.: Nina Guerra e Filipe Guerra
Editorial Presença, 2001

haikai xxi


pardais aninhados
nos esconsos do nosso tecto:
o regresso a casa.

sábado, 7 de novembro de 2020

quadra 70

As sortes são fugidias,
não iluda o reviralho:
a estrampalhar-nos os dias
há de haver sempre um trampalho.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

piccolino

 


«Se conheço bem o meu senhor, ele não poderá passar muito tempo sem o seu anão». Quem o diz é o próprio anão, que vai descrevendo no seu diário o ódio e o nojo que sente pela espécie humana, incluindo ele próprio e os outros anões. No fundo, é o desprezo pela vulnerabilidade que perpassa este grande livro de Pär Lagerkvist (1891-1974).

Num dos antigos principados da actual Itália e numa época do Renascimento onde grassavam a fome, a guerra e a peste, o anão Piccolino é a personificação do mal. A publicação do livro em 1944 e o nosso próprio auto-conhecimento levam-nos a perceber que esse mal é intemporal. O mal é intrínseco à espécie humana.

Com Piccolino percebemos como cada um de nós tem a tendência, por mais longínqua que nos pareça, para comparar e catalogar. Para odiar o melhor porque é melhor. Para odiar o pior porque é pior. Para odiar o igual porque nos repete. Quem não tem um Piccolino dentro de si? Devemos estar sempre vigilantes para que ele não se manifeste.



O Anão
Pär Lagerkvist
Trad.: João Pedro de Andrade (original de 1944: Dvärgen)
Ed.: Antígona

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

a transparência do essencial

Ainda antes de O Perfume (1985) e A Pomba (1987), Patrick Süskind encetava com este O Contrabaixo (1981) a sua análise do poder de pequenos pormenores e acontecimentos na vida das pessoas.

Pela posição, pela visibilidade e pela função, o contrabaixo dir-se-ia transparente. E, no entanto, é o único instrumento imprescindível, aquele sem o qual todos falhariam numa orquestra. Ele vinca e simboliza a existência do seu intérprete.

Talvez tenha de ser assim com muitos. São sempre necessários aqueles que acendem as luzes com que outros se iluminam. O drama é que não sejam e talvez não possam ser reconhecidos. Como as notas graves com que um contrabaixo constrói o caminho.


El Contrabajo
Patrick Süskind
Trad.: Pilar Giralt Gorina (original de 1981: Der Kontrabass)
Ed.: Seix Barral

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

quase tudo isto


Durante alguns anos, Bill Bryson decidiu compreender melhor a "história" do universo, desde o Big Bang até o aparecimento e evolução do homem. E como tinha dificuldade em compreender a literatura sobre os temas em causa, decidiu ser ele a abordá-los.

O resultado é o seu A Short History of Nearly Everything. Escrito por um leigo, é de leitura fácil e estimulante. Também não parece conter grandes incorrecções: as que se encontram são as da própria ciência, que de 2003 para cá, como não podia deixar de ser, as foi actualizando.

A narração das ideias e descobertas que nos ajudam a compreender o mundo é feita sempre com o foco nas personalidades e contradições, generosidades e ódios, ambições e desapegos dos seus protagonistas. E talvez o maior interesse deste livro esteja mesmo nesta verdadeira história, a"pequena história" dos homens que vêm aumentando o nosso conhecimento de quase tudo.

A Short History of Nearly Everything
Bill Bryson
Black Swan
2004 (1.ª ed.: 2003)

terça-feira, 3 de novembro de 2020

adolescência roubada



Quatro de agosto de 1944. Vinte e cinco meses após se terem escondido num anexo secreto dos escritórios da Opekta, Anne Frank e mais sete pessoas, entre as quais os pais e a irmã, são descobertos e presos pelos nazis. Com excepção de Otto, o seu pai, todos morreriam nos campos de extermínio para onde foram enviados. Anne Frank e a irmã Margot sucumbiriam ao tifo que alastrou em Bergen-Belsen no inverno de 1944/1945.

Mas não caiu nas mãos dos nazis um pedaço da vida de Anne: o diário que ela manteve entre 12 de junho de 1942, data do seu décimo-terceiro aniversário, e 1 de agosto de 1944. Esquecido no anexo e recuperado mais tarde pelo pai, é o testemunho de uma adolescência roubada. Nele, Anne vai dando conta dos conflitos entre os habitantes confinados ao anexo; das discussões acerca de temas tão díspares como a política, a guerra, as refeições; do uso cuidadoso do autoclismo para não chamar a atenção dos funcionários em baixo; dos sonhos adiados; dos planos para o futuro; da impossibilidade de ter um espaço para si; da tristeza e da esperança; do medo e do alívio. Kitty, a personagem que ela inventa por trás das páginas do diário, é quem que lhe permite lidar com tudo isto.

Na primavera de 1944, Anne Frank começa a rever o seu diário. Tem a intenção de dá-lo a conhecer ao mundo depois da guerra. Esta é a versão dita definitiva, sem os cortes e correcções a que o pai o sujeitaria antes de o publicar em 1947. A descoberta da sexualidade; a atracção por Peter, outro dos habitantes do anexo; a relação difícil com a mãe – tudo aqui volta a ser confessado a Kitty. Tudo aqui é revivido por esta infeliz rapariga que nos retratos nos aparece sempre com um sorriso, um suave e contido sorriso, e cujas palavras nunca desistem da vida.


The Diary of a Young Girl
Anne Frank
Eds. Otto J. Frank, Mirjam Pressler
Trad. Susan Massotty
2012
Original: Het Achterhuis [O Anexo Secreto]

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

cão fiel do nosso exagero


e nem por isso bebi
e nem às tantas de ti
pedaço de fantasia
em mesa de esquecimento
o corpo que percorria
a noite que percorrendo

e nem por sonos sonhei
e nem de buscas te sei
sussurros com pedra fria
palavras que à boca invento
digamos que não havia
mais tu do que não havendo

e nem por muito se quis
e nenhuma alma condiz
talvez como quem te queira
verdades como te quero
mentiras desta maneira
em tempos já fui sincero

e nem por tudo o que faz
furtivo artista capaz
de saltos sob a fogueira
em cinzas do meu desvelo
por brasas como se esgueira
cão fiel do nosso exagero

               Leceia e 27 de outubro em 2018

domingo, 1 de novembro de 2020

descendente de barão





Eulálio d'Assumpção, centenário orgulhoso e descendente de barão, derrama as suas memórias no leito do hospital onde a morte o espera. Repisa-as para não se esquecer de quem é: «Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço de alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar.»

À medida que a medicação e a proximidade do fim lhe vão retirando lucidez, as memórias confundem-se, assim como se confundem aqueles com quem as partilha: a enfermeira que melhor o trata, os outros enfermeiros e os médicos mal-humorados, a filha, alguém que toma pelo pai assassinado há muito. Mas uma dessas memórias serve sempre de esteio a todas as outras: a do inesperado e repentino desaparecimento da sua mulher, a exuberante Matilde de «pele castanha», pouco depois do nascimento da filha de ambos.

O texto de Chico Buarque foge de um modo exímio à narrativa linear, plasmando o pensamento reinventado e confuso do velho moribundo e fixando de um modo natural o preconceito e a arrogância de um homem que se orgulha de descender de gente nobre e importante e que, apesar de tudo, não resiste aos encantos de uma bela mulata.

Leite Derramado
Chico Buarque
2009
D. Quixote